Não me lembro onde nem quando falei de conexões, mas discorrer a respeito nunca é demais. Tudo na evolução da humanidade é embasado em conexões. Não existe destino, nem predestinação. Sonhar com algo novo e revolucionário é outra utopia. Todas as coisas relacionadas com o desenvolvimento humano estão conectadas, de alguma forma, ao passado, seja ele longínquo ou breve, e na música não é diferente.
Muitos relacionam o aparecimento do power metal com a banda alemã Helloween e, na obviedade das cabeças pensantes deste grupo, aos geniais Michael Weikath e Kai Hansen, fundadores da ícone teutônica...
Mas, e Highway Star do Deep Purple, na distante data de 1972? Ou a fantástica canção “Exciter” de Judas Priest, de 1978? Muitas bandas anteriores ao Helloween tiveram, em algum momento, canções de altíssima velocidade, empenho massacrante de duas guitarras, vocal agressivo, temática épica e blá... blá... blá... A vertente antecessora e até mais espetacular que o power metal, o speed, nos presenteou com um número incalculável de sons acachapantes que lembram, em muito, o “poder” do metal. Quem não se lembra de uma das coisas mais absurdamente extasiantes que surgiu (e do mesmo jeito desapareceu) em 1984, do submundo dinamarquês, a banda Evil?
No início dos anos 80, o heavy metal mais e mais aumentava sua velocidade, munido então de agradável virtuose, o speed metal também estava em evidência e sua crueza pedia por algo mais requintado, algo realmente soberbo. A banda Rainbow, mesmo com a perda de Ronnie James Dio, apresentava ao mundo o álbum “Difficult to Cure”. Quer mais poder que isto?
Sim, era possível! E eis que surgia numa das capitais industriais da Alemanha, a cidade de Hamburgo, o Helloween, (vai ficar chato, porque, posteriormente, usarei essa introdução pra descer a lenha nos mesmos), uma banda de garotos que encanta, numa Split despretensiosa denominada “Death Metal” de 1984, juntamente com a ícone mainstrean Running Wild (na ocasião underground do underground), e as fantásticas Hellhammer da Suiça e Dark Avenger que nunca saíram de suas demos... uma pena, mesmo. “Metal Invaders (que mais tarde seria rearranjada no full “Walls of Jericho”) e “Oernst of Life” foram as composições utilizadas pela molecada alemã nesta empreitada. Também participaram com a canção “Murderer”, da Split “Metal Attack vol 1”, logo nos primeiros dias de 1985, em conjunto com as bandas Grave Digger, Warrant, Sinner, novamente Running Wild, além da suíça Celtic Frost.
Os caras estavam fervendo e, logo a seguir, em março do mesmo ano, lançam o EP (homônimo à banda) que mais ouvi em toda minha vida em sessões ininterruptas. Para lembrar: “Starlight”, “Murderer”, “Warrior”, no lado “A” da mini bolacha e, “Victim of Fate” e “Cry for Freedom” no lado “B”. Alguém já ouviu falar em algo mais fantástico, mais visceral, mais assombroso? Talvez muita coisa parelha, similar, mas algo mais magnânimo... du-vi-de-o-dó! Guitarras tresloucadas em riffs e solos (Weikath e Hansen), um baixo desconcertante e obeso sob o comando de Markus Grosskopf, batera afinadíssima e estonteante de Ingo Schwichtenberg e os vocais... ah!, que singeleza esquisita, mas gratificante de Kai Hansen! Juro pra vocês: chorei lágrimas e mais lágrimas ouvindo essa gênese sagrada do power metal.
Seis meses após, o Helloween nos presenteia com a onipotência metálica, algo jamais presenciado no universo metal, de tão soberbo e divino, o full lenght “Walls of Jericho”. Além de Weikath e Hansen assombrarem o mundo com suas respectivas virtuoses, o show a parte são as interpretações de Hansen, um verdadeiro bruxo arrebatador de almas frágeis (mesmo que paguem de inócuas). Hansen é a magnitude de tudo que o metal sempre sonhou: Emblemático, carismático, virtuoso, buona gente, regente dos menos agraciados e com a sublimidade divina... e generoso.
O Helloween projeta o moleque Michael Kiske nos vocais de suas próximas obras, Keeper of the Seven Keys Part I e II“, devido à sobrecarga de Hansen: compor, tocar, cantar, gerenciar, conter o espírito anarquista, nerd e retardado (impulsivo) de Weikath, em 1987 e 88 e, logo após o ao vivo “Live in the U.K.”, o gênio, desgastado com a bipolaridade do conterrâneo, deixa a banda.
Foda-se que “Live in the U.K.” é mais uma das presepadas “overbud”. Todos estão geniais, principalmente Kiske, Weikath e Hansen. Espasmos e orgasmos múltiplos é o que tive em minhas audições dessa belezura e minha “ecs” gozou junto e muito.
Divergências com o temperamental Michael Weikath fizeram com que Hansen deixasse o Helloween no ano seguinte, 1989, que em seguida, em 1991, lançou o fraquíssimo, esquisito e indigesto “Pink Bubbles Go Ape”, um álbum “nada a ver” com a magnitude da banda, aliás, toda a sequência de sua estrada considero insignificante, firulenta e chata para caralho.
Em contrapartida, no mesmo ano de sua debandada, Hansen funda a banda Gamma Ray. “Heading for Tomorrow , o debut, mostra o que é ser, realmente, um virtuose. “Sigh no More” é uma crescente. “Insanity and Genius” demonstra a cumplicidade de Hansen com Amadeus Mozart. E toda a grandiosidade do gênio se materializa em “Land of the Free”, de 1995, culminando na preciosidade “Somewhere out in Space”, de 1997.
Além do Gamma Ray, o genial Hansen funda o projeto paralelo “Iron Savior”, em 1996. Os senhores já dedicaram algum tempo de suas vidas singulares (pra não dizer insignificantes) em audições dessa franca cosmogênese metálica? É pura britadeira operática. Um desbunde sonoro, até mesmo para os mais exigentes ouvidos da porradaria non sense da metalgrafia anárquica dos tempos contemporâneos. E o FDP deixou, de lambuja, a banda estabilizada em solo promissor para o amigo Peter Sielck. Ele é um verdadeiro gentleman.
Além de Gentry, Iron Fist e Second Hell, protótipos do Helloween, Kai Hansen deu sua contribuição hermética e herculana para um número considerável de bandas e projetos, seja atuando como guitarrista, vocalista ou produtor das mesmas. Até mesmo como baixista ou tecladista o multi-instrumentista, arranjador, mixer, produtor e manager atuou. Bandas diversas como as famosas Avantasia, Angra, Blind Guardian, Hammerfall, Stormwarrior, Paragon, Primal Fear, Heavenly, Heavenwood, Doro Pesch, Heavens Gate, Jorn, Steelpreacher, além das menos conhecidas Dark Age, In Arcadia, Lanzer, Maverick, etc... etc... etc... Todas maculadas com qualidade invejável. Kai Hansen é uma lenda, uma quimera do metal. O verdadeiro “Toque de Midas” do metal alemão. Tão suntuoso e carismático quanto Udo Dirkschinider e não é a toa que, vira e mexe, eles se metem em empreitadas parceiras pra edificar o novo metal alemão que, como sempre foi, é soberbo.
Kai Hansen é um dos maiores ícones da música pesada, metálica, rápida, orgasmática e tudo de bom de todos os tempos, além de ser um dos mais virtuosos guitar man que assombraram este minúsculo ponto azul opaco que insiste em reger as mazelas caóticas de todo o universo, o mísero, mas apaixonante, planeta Terra.
por Luís Henrique Campos